sexta-feira, 24 de abril de 2009

Caça ao lugar vazio

CARTA CAPITAL 15/abril/2009

No auge da crise argentina, em dezembro de 2001, os parlamentares do país vizinho procuravam, sem sucesso, um presidente para por no lugar de Fernando de la Rua, que caíra ante a pressão popular. Foram cinco presidentes em treze dias na Casa Rosada. Guardadas as devidas proporções, a Fundação Bienal de São Paulo, uma das mais importantes instituições culturais do Brasil, vive situação semelhante. Há alguns meses o conselho procura um diretor-presidente para substituir Manoel Pires da Costa, cujos seis anos à frente da Bienal foram em grande parte marcados por escândalos administrativos. O mais cotado a assumir é Andréa Matarazzo, secretário das subprefeituras da Cidade de São Paulo e a sombra do prefeito paulistano. Ainda que sonhe retomar a relevância do tio Cicillo Matarazzo, fundador da Bienal em 1951 e homem todo poderoso da fundação até sua morte, Andrea irá assumir sob um novo estatuto, que colocará rédeas curtas ao presidente da diretoria.


Aprovado recentemente, e ainda sob análise do Ministério Público estadual (cujo teor não está aberto), o novo estatuto estabelece que uma comissão do conselho irá acompanhar de perto a administração da Bienal e cercear o poder do diretor-presidente. Uma auditoria também será contratada para fiscalizar a gestão, segundo explica o presidente do conselho, o arquiteto e acadêmico Miguel Alves Pereira. Pelo estatuo vigente, a diretoria, o braço executivo do conselho, age com perigosa independência - problemas e irregularidades muitas vezes chegam aos conselheiros durante a prestação de contas ou pela imprensa.

A reforma, feita às pressas, em quatro sessões, foi motivada pela repercussão negativa da última edição, de número 28. A “Bienal do Vazio”, como ficou conhecida (por deixar um andar sem obras a fim de repensar a instituição, segundo a proposta curatorial), serviu como metáfora do que vive a fundação. A mostra teve mais espaço nas crônicas policiais e cotidianas que nos suplementos culturais. Sete meses após a sua abertura, a edição ainda não pagou boa parte do que deve aos artistas.

Pelo novo estatuto, a diretoria também não poderá ser composta por conselheiros da ativa, como acontece hoje. A intenção é profissionalizar a gestão e subordiná-la de fato ao conselho, que será mais compacto e dinâmico. O novo estatuto vai diminuir de 60 para 40 o número de membros do conselho e será mais rigoroso com a sua freqüência e recondução ao cargo. O voto por procuração, hoje vulgarizado, só será permitido em ocasiões específicas, segundo Alves Pereira.

Essa situação explica a dificuldade em encontrar um presidente-diretor. “A Bienal vive uma crise sem precedentes, está com o prestígio dilapidado”, reconhece Alves Pereira. Segundo ele, há um déficit de cerca de R$ 3 milhões nos cofres da instituição, embora Pires da Costa, diretor-presidente, ressalte a saúde financeira da fundação: “A Bienal nunca esteve tão bem”, afirma o último.

O valor é de fato pouco significativo diante das cifras trabalhadas pela Bienal. Já a crise de prestígio e perda da relevância no contexto das artes plásticas é grande e crescente e este é o principal desafio do próximo diretor-presidente e o que mais amedronta os candidatos. Inspirada na Bienal de Veneza, a instituição paulista era considerada uma das mais importantes no contexto das artes plásticas internacionais. A Bienal de São Paulo foi também a principal propulsora dos artistas brasileiros no cenário externo.

“Nós estamos desesperadamente procurando um candidato à presidência [da diretoria]”, revela Pereira. Segundo o estatuto vigente, o diretor-presidente deve ser trocado ao término da edição da Bienal de artes. Mas até agora, já foram quatro as pessoas sondadas que recusaram o cargo, entre elas o embaixador Rubens Barbosa, que serviu em Washington, e “um empresário de Pernambuco”, cujo nome não foi revelado por Pereira.

As conversações com Matarazzo (foto), a quinta opção, levam mais de duas semanas. O secretário paulistano não tem experiência em gestão cultural, mas contam a seu favor o poder e o sobrenome. Antes de aceitar, ele pediu tempo para formar sua equipe e analisar as contas, junto ao conselho fiscal.

Para ampliar sua influência, Matarazzo almeja indicar conselheiros de sua confiança. Mesmo que consiga interferir no conselho, não terá a mesma preponderância do tio Ciccillo. Numa entrevista anterior, dada a este repórter no ano passado, Matarazzo falou de sua relação estreita com o tio: “Eu convivia com ele diariamente. Ia muito com ele à Bienal, assistia as reuniões todas. [Ciccillo] Teve uma influência fortíssima”, disse.

Modelo de gestão
Mesmo antes de entrar em vigor, o novo documento já é alvo de críticas. “Nunca ouviram a gente, que participa do dia a dia da instituição. É tudo envolto em segredo. Se eles fossem mais abertos, seriam mais compreendidos e menos criticados”, diz um ex-curador da fundação, Jacopo Visconti. Embora a Bienal tenha dotação orçamentária repassada pelo município de São Paulo (cerca de R$ 2 milhões anuais) e seja de utilidade pública, “o conselho não tem a tradição de ouvir”, reconhece Alves Pereira.

Para Ivo Mesquita (foto seguinte, à direita de Pires da Costa), curador da última edição do evento, a reforma tem de ir além do estatuto. Embora sua proposta para a “Bienal do Vazio” tenha sido a de repensar a instituição, ele não foi consultado durante a reforma do documento.

“Há uma aparente continuidade, mas não há uma estrutura que funcione o ano todo para trabalhar na organização da próxima edição”, diz Mesquita, referindo-se a falta de um corpo que administre o financiamento da Bienal. Às vésperas da última edição, Mesquita teve 40% no orçamento do evento ameaçado de corte pela diretoria.

“O problema é que se criou um modelo de filantropia que não vingou no país”, diz Mesquita. Nos Estados Unidos e na Europa, os membros dos conselhos existem para financiar os museus. No Brasil, muitos usam o cargo para prestígio político.

A opinião é compartilhada por Marcos Mendonça, ex-secretário de Estado da Cultura de São Paulo: “A Bienal precisa de patrocinadores e não viver de captações [via Lei Rouanet]”, defende. “Ou ela faz esta reformulação, ou não sobrevive. A forma de gestão é extremamente equivocada”, diz. Hoje, parte da receita da fundação vem do aluguel do prédio para eventos como a São Paulo Fashion Week – isso não estava no script de Cicillo Matarazzo.


O EPÍLOGO DO SEDUTOR
“O Manoel é um bonachão otimista. É um sedutor no relacionamento público”, diz o chefe do conselho, Miguel Alves Pereira, sobre o homem mais polêmico da fundação. Manoel Pires da Costa veste ternos bem cortados, exala simpatia e preside a diretoria há seis anos, ou há três mandatos. Na sua gestão, foi implantada uma das mudanças mais significativas da história da Bienal – o fim das representações nacionais (até a edição de 2006, com curadoria de Lisette Lagnado, cada país tinha um estande na mostra). Mas foram os escândalos administrativos que marcaram a sua gestão.

Em 2007, a imprensa revelou que o diretor-presidente havia contratado uma empresa própria (a TPT Comunicações) para editar uma revista da fundação. Uma corretora de seu genro também foi escolhida para cuidar do seguro da mostra de 2006. Além disso, uma empresa de "factoring" de Pires da Costa descontava duplicatas que a Bienal tinha a receber de empresas que alugavam o prédio para eventos. O Ministério Público avaliou que não houve prejuízos à instituição, mas o diretor-presidente teve de assinar um termo de ajustamento de conduta.

“Existe um artigo no estatuto que regula isso... mas eu nem vi o estatuto. Eu reconheci [o erro de conduta] com absoluta boa fé”, justifica-se Pires da Costa. “Eu coloquei dinheiro aqui. Isso ninguém diz, não é”, defende-se.

Empresário, ex-presidente da BM&V, Pires da Costa diz que ficou tanto tempo à frente da Bienal “por ausência de interesses e comodismo dos conselheiros”. Em 2007, preocupado com a imagem da Bienal, o conselho costurou um acordo que previa a terceira eleição de Pires da Costa e sua renúncia posterior, para lhe garantir uma saída honrosa. Assumiria Marcos Mendonça, ex-secretário de Estado da Cultura de São Paulo, indicado então à vice-diretoria. O acordo, negado por Pires da Costa, mas confirmado por Mendonça e pela presidência do conselho, não foi cumprido.

Na mesma ocasião, o secretário-adjunto da Cultura do Estado, Ronaldo Bianchi, enviou uma carta aos conselheiros pedindo a renúncia de Pires da Costa, argumentando que com sua "falta de credibilidade seria difícil a captação de recursos para a 28ª Bienal”. Ele não capitulou e comandou a edição mais polêmica dos últimos tempos. Mas antes de sair, afirma: “estou deixando a casa em ordem”.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Invasão silenciosa

Época, 20/12/2004

Milhares de sul-americanos clandestinos chegam todo ano a São Paulo. Além do trabalho duro, eles agora enfrentam a tuberculose

Diariamente, sacoleiros de todo o país chegam a São Paulo à procura das roupas baratas vendidas nos bairros do Bom Retiro e Brás. O destino desses compradores é o mesmo de milhares de bolivianos, peruanos, paraguaios e outros vizinhos sul-americanos que também desembarcam todo ano na cidade - só que para trabalhar e viver. Não há números exatos, mas calcula-se que mais de 100 mil deles estejam na capital de São Paulo, a maioria em situação irregular. Alguns vendem artesanato pelas ruas, a maior parte vive reclusa em oficinas de costura, onde trabalha por até 16 horas ao dia, não raro em regime de semi-escravidão, produzindo a roupa barata exibida nas vitrines.

Eles vêm atrás do sonho de uma vida melhor. Encontram péssimas condições de sobrevivência, mas consideram-nas preferíveis à pobreza de seus países. Para alguns, a situação piora quando se tornam vítimas da alta incidência de tuberculose que ronda as comunidades destes imigrantes. Os casos chegaram à Secretaria de Saúde do município, que está distribuindo folhetos em espanhol sobre como prevenir a doença. Os riscos não superam, porém, a atração exercida pela maior metrópole da América do Sul. ''O Brasil é o paraíso do Mercosul. É melhor que o resto do continente'', afirma a geógrafa Rosa Ester Rossini, da USP, que pesquisa o assunto.

Uma boliviana de 22 anos, que não quis revelar o nome, conta que contraiu tuberculose há quase um ano. Os primeiros sintomas são enganosos. ''Achei que era um resfriado, mas a tosse não parava.'' Há três anos ela trabalha na periferia da capital, numa oficina de costura que funciona na casa de dois quartos onde vive com cinco imigrantes. ''Esses ambientes com falta de luminosidade e ventilação concentram gente mal alimentada e com baixa resistência imunológica. São perfeitos para propagar a doença'', explica a médica sanitarista Naomi Komatsu, coordenadora do Programa de Controle de Tuberculose do município.

(...)
Os Estados Unidos ainda são o destino preferido pelos pobres dos países latinos. Mas, como é cada vez mais difícil cruzar a fronteira, boa parte deles opta pelo plano B: São Paulo. Segundo o padre Sidnei Silva, diretor do Centro de Estudos Migratórios da arquidiocese de São Paulo, os imigrantes têm entre 18 e 35 anos. Vêm de povoados do interior de seus países e chegam com pouca instrução. Mas há exceções, como a professora peruana (foto ao lado), que não se identifica por estar irregular. Formada em Educação Física, entrou sozinha no Brasil em 2002, com a promessa de uma bolsa de pós-graduação em uma universidade paulista, feita por um professor brasileiro que ela conheceu durante o curso de graduação no Peru. O sonho se desmanchou quando descobriu que não havia bolsa alguma. Resoluta, ela voltou ao Peru, onde vendeu um pedaço de terra do pai, agricultor. Com o dinheiro arrecadado, retornou a São Paulo, disposta a encarar a pós-graduação por conta própria, mas não sabe onde. Para pagar o futuro curso e se sustentar na cidade, ela, como tantos conterrâneos, foi trabalhar e morar em uma oficina de costura. A jornada começava às 8 horas com o café-da-manhã, de apenas 15 minutos. ''Podíamos comer apenas um pão'', relata. Depois só paravam para almoço, chá e ceia, servida às 23 horas, antes de se deitar. Do salário de R$ 350, os patrões descontavam mais de R$ 200 pela comida e energia elétrica. Para escapar, a professora foi acolhida pela Pastoral do Migrante. Agora, trabalha como doméstica e mora na casa dos patrões. ''Se eu ficasse na oficina, nunca poderia pensar em estudar'', diz.

A Pastoral do Migrante, que funciona na Igreja Nossa Senhora da Paz, na região central da cidade, é uma espécie de pronto-socorro da comunidade dos imigrantes sul-americanos em São Paulo. ''Além da assistência jurídica e psicológica, nós também damos apoio espiritual'', conta o coordenador, o padre Roque Pattussi. Ele reza missas em espanhol ao lado de padre Sidnei, do Centro de Estudos.

(...)
Legais ou não, os imigrantes saem da sombra para celebrar as festas dos santos populares da América Latina. Um dos pontos de encontro dessa gente é a Praça Kantuta, na zona leste da cidade. Todos os domingos, reúnem-se ali milhares de imigrantes. São 86 barracas de culinária, artesanato e produtos típicos. ''É uma pequena Bolívia'', conta Jorge Merúvia, de 41 anos, fundador da feira. Em sua banca, muitos imigrantes vão procurar o emprego anunciado nos jornais ou rádios da Bolívia. ''Eles prometem US$ 500 a essas pessoas. Quando chegam, o valor vira R$ 500'', conta Ruth. Esses incautos ainda são obrigados a pagar pelos custos da viagem. Trabalham meses sem ganhar dinheiro, reproduzindo um sistema de semi-escravidão por dívida ainda comum nos cantos mais atrasados do Brasil rural. Para amenizar o sofrimento, no centro da praça, uma multidão assiste aos jogos de futebol. Um dos times é o Latina Sat, equipe da rádio comunitária que transmite programas em espanhol e nas línguas nativas andinas, quéchua e aimará.

(...)
Para amenizar o cotidiano desses imigrantes, os padres Sidnei e Roque enviaram ao Congresso Nacional o projeto de uma nova Lei de Estrangeiros. O texto prevê uma legislação mais branda, que facilite a permanência dos que trabalham aqui. Na prática, o Brasil é bem receptivo. Todo mês, a Delegacia de Migração da Polícia Federal recebe cerca de 300 pedidos de permanência. Depois de apreciados pelo Ministério da Justiça, cerca de 90% são aprovados. Mas uma mudança legal facilitaria a vida dos que estão aqui, como a artista plástica Tania Mellado, de 26 anos, que veio em maio do ano passado de Lima, capital do Peru. Ela entrou com visto de turista, de seis meses, como a maioria dos imigrantes, e agora está irregular. Ganha R$ 700, em média, com a venda de três ou quatro telas por mês na Praça da República, no centro. Mesmo ilegal, Tania mostra o nome porque providencia sua regularização. À espera de um resultado favorável, no fim do ano passado a artista Tania presenteou a Igreja da Paz com um quadro a óleo de Nuestro Señor de Los Milagros, imagem de Jesus Cristo muito popular no Peru. Agora, pretende construir na igreja um altar típico, para preservar as tradições religiosas peruanas.

sábado, 3 de maio de 2008

a história de Elisa e Jurandir

A festa estava pronta. Seria coisa pequena, cardápio frugal, sem bebidas alcoólicas. O bolo de casamento ficou no centro da mesa enfeitada, suficiente para a meia-dúzia de parentes que compareceriam à recepção. A outra meia-dúzia de convidados não iria à festa por discordar do enlace. Naquele tarde quente de terça-feira, 22 de janeiro, a noiva se preparou discretamente, com vestido novo e próprio para uma senhora sessenta anos. Não usava maquilagem, vaidade proibida pela igreja que freqüenta. Estava sóbria e segura. Casaria-se, logo mais, com o homem que tão bem cuidou nos últimos tempos. Aliás, cuidar de idosos é tarefa recorrente no currículo da mulher que aqui chamaremos Elisa. Dentre seus pacientes esteve a irmã de Jurandir, o noivo, que já rompeu a barreira dos oitenta. Olga, a irmã em questão, não esperou para ver a cerimônia – morreu há um ano, deixando Elisa sem trabalho, mas não sem perspectivas. Havia outros idosos na família e ela foi logo contratada pelas filhas de Jurandir, cabelos brancos, viúvo, militar aposentado e com problemas de memória trazidos pela senilidade.

Tão logo o conheceu, mudou-se para sua casa. Fazia a comida de Jurandir, cuidava das tarefas domésticas e esmerava-se em dar tudo o que aquele homem fragilizado necessitasse. Ressalte-se que o rol de necessidades era extenso, mas não incluía tarefas que em outros tempos lhe seriam prazerosas – há dúvidas, inclusive, se Jurandir ainda se lembra de tais coisas. As duas filhas do contratante celebraram a chegada da enfermeira, como se recebessem uma carta de alforria. Para elas, era passado o tempo das papinhas na boca, das consultas freqüentes ao médico e das conversas desencontradas de Jurandir – a rotina tornou-se, então, presente para Elisa. A mulher prontamente se ocupou das funções enfadonhas. E parecia estar feliz.

Antes que a história continue é preciso citar Haroldo, o terceiro filho de Jurandir. O rapaz, nos seus trinta anos, foi o artífice do, até então, mais atabalhoado casamento da história familiar, que serve para ilustrar a problemática relação do rapaz com o matrimônio. Há algum tempo, casou-se com “pompa e circunstância”, apesar das recomendações de sua falecida mãe à noiva do rapaz: “Ele tem uns parafusos soltos”, advertiu a senhora. Talvez por má-fé ou por outra razão que valeria apenas uma nota de rodapé neste caso, o casamento durou uma semana, deixando perplexa a pequena a cidade onde vivem, no interior de São Paulo. Sim, apenas uma semana depois, Haroldo estava de volta à casa dos pais e lá continua até hoje, rondado nos últimos tempos pela presença constante de Elisa.

Foi com surpresa semelhante que a família (entenda-se aqui irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhos-neto) recebeu a notícia do namoro de Jurandir e Elisa. Uma prima insinuou que a enfermeira teria de ser criativa para fazer as “coisas” acontecerem, desdenhando do apetite e das capacidades do velho militar, que em outros tempos adorava ostentar a virilidade. Outra disse que tudo se tratava de um “golpe do baú”, no que foi prontamente contestada por uma terceira parente, que reclassificou a ação como “golpe da pensão”. Jurandir recebe uma aposentadoria polpuda, pelos serviços prestados à corporação militar. Serviu, inclusive, na segurança pessoal do falecido governador Adhemar de Barros, história que adorava espalhar, quando ainda se recordava de suas funções no Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo de São Paulo.

Era explícito o interesse de Elisa na pensão de Jurandir. Para quem pouco ou quase nada teve na vida, o dinheiro era uma fortuna, que lhe poderia garantir uma boa velhice, assim que Jurandir “abotoasse o paletó”. As filhas e parte da família lavaram as mãos. Haroldo manteve-se calado, como sempre. “Se ela cuidar bem do Jurandir, a pensão vai ser um bom pagamento pelos seus serviços”, era a frase que se espalhava pelas rodas de conversa da família expandida.

Rapidamente, Elisa tomou conta da vida de Jurandir. Ela mesmo anunciou o namoro, o noivado e, antes do casamento, a conversão do futuro marido à sua fé evangélica. Para não “cair da graça”, segundo o termo usado pela sua igreja, a Congregação Cristã no Brasil, ela só poderia se casar com outro “irmão na fé”. Acontece que Jurandir sempre afirmou aos quatro ventos a sua descrença em Deus. Mas isso pouco parecia importar à obstinada senhora, que meses depois de se instalar na vida de Jurandir o levou às “águas do santo batismo”. O ateu virou evangélico.

Com as contas acertadas com Deus, Elisa pôde dar seguimento ao seu plano. Marcou a data da cerimônia civil, comunicou a dúzia de parentes e os chamou para o casamento. Uma amiga se prontificou a fazer o bolo, outra ajudou a noiva a escolher um vestido e, na hora acertada, Elisa seguiu para o cartório, junto dos padrinhos e das filhas do militar, que cheias de felicidade abdicaram da pensão do pai em nome da liberdade. Jurandir seria conduzido à cerimônia pelo filho, Haroldo, que naquela noite não dormiu, pensando em como lhe seria difícil a vida se Elisa administrasse a pensão do pai. Mesmo que alguns pinos não lhe fossem bem apertados, o rapaz sabia que, na posse de um laudo psiquiátrico, continuaria com a aposentadoria paterna no dia que Jurandir partisse dessa para melhor (ou para pior, segundo alguns). Por isso mesmo, ele teria de barrar os planos de Elisa. A senhora era esperta, mas desdenhou da sagacidade do rapaz.

No dia do enlace, Haroldo vestiu Jurandir e o colocou no carro. Quando a noiva ainda dava os últimos retoques no penteado, ele seguiu para a casa de uma prima. Estacionou o carro e deixou o noivo esperando. Na sala de jantar, confidenciou à parente que não compactuava com a união e que iria seqüestrar o pai. A mulher disse que não queria ser cúmplice, mas já era tarde. Quando perguntou por Jurandir, Haroldo respondeu que o pai sequer se lembrava que aquele era o dia de seu casamento. É provável que também não se lembrasse que tinha uma noiva e, menos ainda, que ela se chamasse Elisa e que ele agora era um homem evangélico e temente a Deus. Ante à incredulidade da prima, Haroldo deu partida no carro e foi passear com o pai. Pegou a estrada rumo a uma cidade vizinha, com toda a calma do mundo.

Na hora marcada, as filhas e a meia dúzia de parentes se reuniram no cartório. Esperaram por Haroldo e por Jurandir, mas eles não chegaram. A noiva logo desatou a chorar. Pensou na velhice sem dinheiro, sem a possibilidade de ela mesmo contratar uma enfermeira que lhe pusesse ao sol e lhe servisse sopinha, fizesse frio ou calor. As filhas se inquietaram. A meia-dúzia de parentes logo se dispersou. A pensão que fez a humilde senhora se apaixonar pelo velho milico parece que também azeitou os parafusos de Haroldo. Nunca o rapaz foi tão sagaz em toda a vida. Na viagem que fez com o pai, consta que Jurandir ficou animado e até recobrou a memória, ao identificar as paisagens que conhecia desde há muito tempo. Só não se lembrou de Elisa, nem mesmo quando, lá pelas tantas, repetiu para Haroldo a frase que dizia todo dia à enfermeira: “Estou ficando com uma fominha...”. Para azar de Jurandir não havia sopa, nem ninguém que lhe levasse a comida à boca.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

sem mocinhos nem bandidos

resenha para a Editora Barcarola, agosto de 2007

O romance do espanhol José Ovejero ganhou o prestigiado Prêmio Primavera da Literatura

As Vidas Alheias é um romance europeu. Mas na Europa descrita por José Overejo não há espaço para adjetivos como clássico e civilizado, comumente associados ao velho mundo. O escritor espanhol revela o continente que se esconde sob o tapete, aquele dos imigrantes que vendem Kebab pelas ruas, a nova Europa que mantém os velhos vícios imperialistas e exploratórios. O livro que ganhou o “Prêmio Primavera da Literatura”, um dos mais importantes da Europa, é também uma história de conflitos pessoais, de fraquezas humanas, de vidas que se cruzam, enfim.

O enredo gira em torno da chantagem de alguns jovens belgas, que descobrem a foto de um antigo explorador em ação no Congo. Em tempos politicamente corretos, a imagem se tornaria constrangedora para um dos descendentes deste explorador, o empresário Lebeaux. Ele é presidente de uma grande companhia que ainda mantém negócios na África, valendo-se da exploração de mão-de-obra semi-escrava e se aproveitando dos conflitos que espalham sangue pelo continente. Mas nos círculos sociais de Bruxelas é um homem respeitado, amigo de políticos influentes, cioso por manter sua boa imagem.

O cenário também é emblemático: Bruxelas é a capital da União Européia e os personagens e histórias pessoais, envolvendo imigrantes de países pobres, são comums a todas as capitais do Velho Mundo. Os impasses também: os chantageadores contam com a ajuda de um africano, Kasongo. Ao mesmo tempo, um deles, o belga Claude, queixa-se pelo fato de que Bruxelas é cada vez menos uma cidade européia e diz que gostaria de se pintar de negro para conseguir os benefícios sociais que recebem os imigrantes. De repente, não há campos definidos e temas como xenofobia, identidade nacional e deterioração de instituições tradicionais se espalham nas entrelinhas. É a globalização do barbarismo. Mesmo Kasongo, que foi buscar asilo na civilizada Bruxelas, numa certa altura do livro diz: “Para isso havia Kasongo atravessado o mundo? Para nunca sair do mesmo lugar?”, pergunta-se, ao se deparar com a paisagem miserável de um bairro periférico habitado por imigrantes, na capital belga.

Não há mocinhos e bandidos em As Vidas Alheias. Parece que o mundo pós-moderno e globalizado já não comporta a velha divisão maniqueísta do bem e do mal. O livro conta, sobretudo, uma história da atualidade, em que os indivíduos se sobressaem, mesmo quanto estão todos inseridos em um mesmo processo social. José Ovejero não fez um livro sobre a história de exploração africana, mas sobre a luta de sobrevivência de Kasongo, o complexo de perdedor de Claude, a rebeldia de Daniel e as questões de auto-afirmação de Lebeaux.