sexta-feira, 24 de abril de 2009

Caça ao lugar vazio

CARTA CAPITAL 15/abril/2009

No auge da crise argentina, em dezembro de 2001, os parlamentares do país vizinho procuravam, sem sucesso, um presidente para por no lugar de Fernando de la Rua, que caíra ante a pressão popular. Foram cinco presidentes em treze dias na Casa Rosada. Guardadas as devidas proporções, a Fundação Bienal de São Paulo, uma das mais importantes instituições culturais do Brasil, vive situação semelhante. Há alguns meses o conselho procura um diretor-presidente para substituir Manoel Pires da Costa, cujos seis anos à frente da Bienal foram em grande parte marcados por escândalos administrativos. O mais cotado a assumir é Andréa Matarazzo, secretário das subprefeituras da Cidade de São Paulo e a sombra do prefeito paulistano. Ainda que sonhe retomar a relevância do tio Cicillo Matarazzo, fundador da Bienal em 1951 e homem todo poderoso da fundação até sua morte, Andrea irá assumir sob um novo estatuto, que colocará rédeas curtas ao presidente da diretoria.


Aprovado recentemente, e ainda sob análise do Ministério Público estadual (cujo teor não está aberto), o novo estatuto estabelece que uma comissão do conselho irá acompanhar de perto a administração da Bienal e cercear o poder do diretor-presidente. Uma auditoria também será contratada para fiscalizar a gestão, segundo explica o presidente do conselho, o arquiteto e acadêmico Miguel Alves Pereira. Pelo estatuo vigente, a diretoria, o braço executivo do conselho, age com perigosa independência - problemas e irregularidades muitas vezes chegam aos conselheiros durante a prestação de contas ou pela imprensa.

A reforma, feita às pressas, em quatro sessões, foi motivada pela repercussão negativa da última edição, de número 28. A “Bienal do Vazio”, como ficou conhecida (por deixar um andar sem obras a fim de repensar a instituição, segundo a proposta curatorial), serviu como metáfora do que vive a fundação. A mostra teve mais espaço nas crônicas policiais e cotidianas que nos suplementos culturais. Sete meses após a sua abertura, a edição ainda não pagou boa parte do que deve aos artistas.

Pelo novo estatuto, a diretoria também não poderá ser composta por conselheiros da ativa, como acontece hoje. A intenção é profissionalizar a gestão e subordiná-la de fato ao conselho, que será mais compacto e dinâmico. O novo estatuto vai diminuir de 60 para 40 o número de membros do conselho e será mais rigoroso com a sua freqüência e recondução ao cargo. O voto por procuração, hoje vulgarizado, só será permitido em ocasiões específicas, segundo Alves Pereira.

Essa situação explica a dificuldade em encontrar um presidente-diretor. “A Bienal vive uma crise sem precedentes, está com o prestígio dilapidado”, reconhece Alves Pereira. Segundo ele, há um déficit de cerca de R$ 3 milhões nos cofres da instituição, embora Pires da Costa, diretor-presidente, ressalte a saúde financeira da fundação: “A Bienal nunca esteve tão bem”, afirma o último.

O valor é de fato pouco significativo diante das cifras trabalhadas pela Bienal. Já a crise de prestígio e perda da relevância no contexto das artes plásticas é grande e crescente e este é o principal desafio do próximo diretor-presidente e o que mais amedronta os candidatos. Inspirada na Bienal de Veneza, a instituição paulista era considerada uma das mais importantes no contexto das artes plásticas internacionais. A Bienal de São Paulo foi também a principal propulsora dos artistas brasileiros no cenário externo.

“Nós estamos desesperadamente procurando um candidato à presidência [da diretoria]”, revela Pereira. Segundo o estatuto vigente, o diretor-presidente deve ser trocado ao término da edição da Bienal de artes. Mas até agora, já foram quatro as pessoas sondadas que recusaram o cargo, entre elas o embaixador Rubens Barbosa, que serviu em Washington, e “um empresário de Pernambuco”, cujo nome não foi revelado por Pereira.

As conversações com Matarazzo (foto), a quinta opção, levam mais de duas semanas. O secretário paulistano não tem experiência em gestão cultural, mas contam a seu favor o poder e o sobrenome. Antes de aceitar, ele pediu tempo para formar sua equipe e analisar as contas, junto ao conselho fiscal.

Para ampliar sua influência, Matarazzo almeja indicar conselheiros de sua confiança. Mesmo que consiga interferir no conselho, não terá a mesma preponderância do tio Ciccillo. Numa entrevista anterior, dada a este repórter no ano passado, Matarazzo falou de sua relação estreita com o tio: “Eu convivia com ele diariamente. Ia muito com ele à Bienal, assistia as reuniões todas. [Ciccillo] Teve uma influência fortíssima”, disse.

Modelo de gestão
Mesmo antes de entrar em vigor, o novo documento já é alvo de críticas. “Nunca ouviram a gente, que participa do dia a dia da instituição. É tudo envolto em segredo. Se eles fossem mais abertos, seriam mais compreendidos e menos criticados”, diz um ex-curador da fundação, Jacopo Visconti. Embora a Bienal tenha dotação orçamentária repassada pelo município de São Paulo (cerca de R$ 2 milhões anuais) e seja de utilidade pública, “o conselho não tem a tradição de ouvir”, reconhece Alves Pereira.

Para Ivo Mesquita (foto seguinte, à direita de Pires da Costa), curador da última edição do evento, a reforma tem de ir além do estatuto. Embora sua proposta para a “Bienal do Vazio” tenha sido a de repensar a instituição, ele não foi consultado durante a reforma do documento.

“Há uma aparente continuidade, mas não há uma estrutura que funcione o ano todo para trabalhar na organização da próxima edição”, diz Mesquita, referindo-se a falta de um corpo que administre o financiamento da Bienal. Às vésperas da última edição, Mesquita teve 40% no orçamento do evento ameaçado de corte pela diretoria.

“O problema é que se criou um modelo de filantropia que não vingou no país”, diz Mesquita. Nos Estados Unidos e na Europa, os membros dos conselhos existem para financiar os museus. No Brasil, muitos usam o cargo para prestígio político.

A opinião é compartilhada por Marcos Mendonça, ex-secretário de Estado da Cultura de São Paulo: “A Bienal precisa de patrocinadores e não viver de captações [via Lei Rouanet]”, defende. “Ou ela faz esta reformulação, ou não sobrevive. A forma de gestão é extremamente equivocada”, diz. Hoje, parte da receita da fundação vem do aluguel do prédio para eventos como a São Paulo Fashion Week – isso não estava no script de Cicillo Matarazzo.


O EPÍLOGO DO SEDUTOR
“O Manoel é um bonachão otimista. É um sedutor no relacionamento público”, diz o chefe do conselho, Miguel Alves Pereira, sobre o homem mais polêmico da fundação. Manoel Pires da Costa veste ternos bem cortados, exala simpatia e preside a diretoria há seis anos, ou há três mandatos. Na sua gestão, foi implantada uma das mudanças mais significativas da história da Bienal – o fim das representações nacionais (até a edição de 2006, com curadoria de Lisette Lagnado, cada país tinha um estande na mostra). Mas foram os escândalos administrativos que marcaram a sua gestão.

Em 2007, a imprensa revelou que o diretor-presidente havia contratado uma empresa própria (a TPT Comunicações) para editar uma revista da fundação. Uma corretora de seu genro também foi escolhida para cuidar do seguro da mostra de 2006. Além disso, uma empresa de "factoring" de Pires da Costa descontava duplicatas que a Bienal tinha a receber de empresas que alugavam o prédio para eventos. O Ministério Público avaliou que não houve prejuízos à instituição, mas o diretor-presidente teve de assinar um termo de ajustamento de conduta.

“Existe um artigo no estatuto que regula isso... mas eu nem vi o estatuto. Eu reconheci [o erro de conduta] com absoluta boa fé”, justifica-se Pires da Costa. “Eu coloquei dinheiro aqui. Isso ninguém diz, não é”, defende-se.

Empresário, ex-presidente da BM&V, Pires da Costa diz que ficou tanto tempo à frente da Bienal “por ausência de interesses e comodismo dos conselheiros”. Em 2007, preocupado com a imagem da Bienal, o conselho costurou um acordo que previa a terceira eleição de Pires da Costa e sua renúncia posterior, para lhe garantir uma saída honrosa. Assumiria Marcos Mendonça, ex-secretário de Estado da Cultura de São Paulo, indicado então à vice-diretoria. O acordo, negado por Pires da Costa, mas confirmado por Mendonça e pela presidência do conselho, não foi cumprido.

Na mesma ocasião, o secretário-adjunto da Cultura do Estado, Ronaldo Bianchi, enviou uma carta aos conselheiros pedindo a renúncia de Pires da Costa, argumentando que com sua "falta de credibilidade seria difícil a captação de recursos para a 28ª Bienal”. Ele não capitulou e comandou a edição mais polêmica dos últimos tempos. Mas antes de sair, afirma: “estou deixando a casa em ordem”.

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