segunda-feira, 5 de maio de 2008

Invasão silenciosa

Época, 20/12/2004

Milhares de sul-americanos clandestinos chegam todo ano a São Paulo. Além do trabalho duro, eles agora enfrentam a tuberculose

Diariamente, sacoleiros de todo o país chegam a São Paulo à procura das roupas baratas vendidas nos bairros do Bom Retiro e Brás. O destino desses compradores é o mesmo de milhares de bolivianos, peruanos, paraguaios e outros vizinhos sul-americanos que também desembarcam todo ano na cidade - só que para trabalhar e viver. Não há números exatos, mas calcula-se que mais de 100 mil deles estejam na capital de São Paulo, a maioria em situação irregular. Alguns vendem artesanato pelas ruas, a maior parte vive reclusa em oficinas de costura, onde trabalha por até 16 horas ao dia, não raro em regime de semi-escravidão, produzindo a roupa barata exibida nas vitrines.

Eles vêm atrás do sonho de uma vida melhor. Encontram péssimas condições de sobrevivência, mas consideram-nas preferíveis à pobreza de seus países. Para alguns, a situação piora quando se tornam vítimas da alta incidência de tuberculose que ronda as comunidades destes imigrantes. Os casos chegaram à Secretaria de Saúde do município, que está distribuindo folhetos em espanhol sobre como prevenir a doença. Os riscos não superam, porém, a atração exercida pela maior metrópole da América do Sul. ''O Brasil é o paraíso do Mercosul. É melhor que o resto do continente'', afirma a geógrafa Rosa Ester Rossini, da USP, que pesquisa o assunto.

Uma boliviana de 22 anos, que não quis revelar o nome, conta que contraiu tuberculose há quase um ano. Os primeiros sintomas são enganosos. ''Achei que era um resfriado, mas a tosse não parava.'' Há três anos ela trabalha na periferia da capital, numa oficina de costura que funciona na casa de dois quartos onde vive com cinco imigrantes. ''Esses ambientes com falta de luminosidade e ventilação concentram gente mal alimentada e com baixa resistência imunológica. São perfeitos para propagar a doença'', explica a médica sanitarista Naomi Komatsu, coordenadora do Programa de Controle de Tuberculose do município.

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Os Estados Unidos ainda são o destino preferido pelos pobres dos países latinos. Mas, como é cada vez mais difícil cruzar a fronteira, boa parte deles opta pelo plano B: São Paulo. Segundo o padre Sidnei Silva, diretor do Centro de Estudos Migratórios da arquidiocese de São Paulo, os imigrantes têm entre 18 e 35 anos. Vêm de povoados do interior de seus países e chegam com pouca instrução. Mas há exceções, como a professora peruana (foto ao lado), que não se identifica por estar irregular. Formada em Educação Física, entrou sozinha no Brasil em 2002, com a promessa de uma bolsa de pós-graduação em uma universidade paulista, feita por um professor brasileiro que ela conheceu durante o curso de graduação no Peru. O sonho se desmanchou quando descobriu que não havia bolsa alguma. Resoluta, ela voltou ao Peru, onde vendeu um pedaço de terra do pai, agricultor. Com o dinheiro arrecadado, retornou a São Paulo, disposta a encarar a pós-graduação por conta própria, mas não sabe onde. Para pagar o futuro curso e se sustentar na cidade, ela, como tantos conterrâneos, foi trabalhar e morar em uma oficina de costura. A jornada começava às 8 horas com o café-da-manhã, de apenas 15 minutos. ''Podíamos comer apenas um pão'', relata. Depois só paravam para almoço, chá e ceia, servida às 23 horas, antes de se deitar. Do salário de R$ 350, os patrões descontavam mais de R$ 200 pela comida e energia elétrica. Para escapar, a professora foi acolhida pela Pastoral do Migrante. Agora, trabalha como doméstica e mora na casa dos patrões. ''Se eu ficasse na oficina, nunca poderia pensar em estudar'', diz.

A Pastoral do Migrante, que funciona na Igreja Nossa Senhora da Paz, na região central da cidade, é uma espécie de pronto-socorro da comunidade dos imigrantes sul-americanos em São Paulo. ''Além da assistência jurídica e psicológica, nós também damos apoio espiritual'', conta o coordenador, o padre Roque Pattussi. Ele reza missas em espanhol ao lado de padre Sidnei, do Centro de Estudos.

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Legais ou não, os imigrantes saem da sombra para celebrar as festas dos santos populares da América Latina. Um dos pontos de encontro dessa gente é a Praça Kantuta, na zona leste da cidade. Todos os domingos, reúnem-se ali milhares de imigrantes. São 86 barracas de culinária, artesanato e produtos típicos. ''É uma pequena Bolívia'', conta Jorge Merúvia, de 41 anos, fundador da feira. Em sua banca, muitos imigrantes vão procurar o emprego anunciado nos jornais ou rádios da Bolívia. ''Eles prometem US$ 500 a essas pessoas. Quando chegam, o valor vira R$ 500'', conta Ruth. Esses incautos ainda são obrigados a pagar pelos custos da viagem. Trabalham meses sem ganhar dinheiro, reproduzindo um sistema de semi-escravidão por dívida ainda comum nos cantos mais atrasados do Brasil rural. Para amenizar o sofrimento, no centro da praça, uma multidão assiste aos jogos de futebol. Um dos times é o Latina Sat, equipe da rádio comunitária que transmite programas em espanhol e nas línguas nativas andinas, quéchua e aimará.

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Para amenizar o cotidiano desses imigrantes, os padres Sidnei e Roque enviaram ao Congresso Nacional o projeto de uma nova Lei de Estrangeiros. O texto prevê uma legislação mais branda, que facilite a permanência dos que trabalham aqui. Na prática, o Brasil é bem receptivo. Todo mês, a Delegacia de Migração da Polícia Federal recebe cerca de 300 pedidos de permanência. Depois de apreciados pelo Ministério da Justiça, cerca de 90% são aprovados. Mas uma mudança legal facilitaria a vida dos que estão aqui, como a artista plástica Tania Mellado, de 26 anos, que veio em maio do ano passado de Lima, capital do Peru. Ela entrou com visto de turista, de seis meses, como a maioria dos imigrantes, e agora está irregular. Ganha R$ 700, em média, com a venda de três ou quatro telas por mês na Praça da República, no centro. Mesmo ilegal, Tania mostra o nome porque providencia sua regularização. À espera de um resultado favorável, no fim do ano passado a artista Tania presenteou a Igreja da Paz com um quadro a óleo de Nuestro Señor de Los Milagros, imagem de Jesus Cristo muito popular no Peru. Agora, pretende construir na igreja um altar típico, para preservar as tradições religiosas peruanas.

sábado, 3 de maio de 2008

a história de Elisa e Jurandir

A festa estava pronta. Seria coisa pequena, cardápio frugal, sem bebidas alcoólicas. O bolo de casamento ficou no centro da mesa enfeitada, suficiente para a meia-dúzia de parentes que compareceriam à recepção. A outra meia-dúzia de convidados não iria à festa por discordar do enlace. Naquele tarde quente de terça-feira, 22 de janeiro, a noiva se preparou discretamente, com vestido novo e próprio para uma senhora sessenta anos. Não usava maquilagem, vaidade proibida pela igreja que freqüenta. Estava sóbria e segura. Casaria-se, logo mais, com o homem que tão bem cuidou nos últimos tempos. Aliás, cuidar de idosos é tarefa recorrente no currículo da mulher que aqui chamaremos Elisa. Dentre seus pacientes esteve a irmã de Jurandir, o noivo, que já rompeu a barreira dos oitenta. Olga, a irmã em questão, não esperou para ver a cerimônia – morreu há um ano, deixando Elisa sem trabalho, mas não sem perspectivas. Havia outros idosos na família e ela foi logo contratada pelas filhas de Jurandir, cabelos brancos, viúvo, militar aposentado e com problemas de memória trazidos pela senilidade.

Tão logo o conheceu, mudou-se para sua casa. Fazia a comida de Jurandir, cuidava das tarefas domésticas e esmerava-se em dar tudo o que aquele homem fragilizado necessitasse. Ressalte-se que o rol de necessidades era extenso, mas não incluía tarefas que em outros tempos lhe seriam prazerosas – há dúvidas, inclusive, se Jurandir ainda se lembra de tais coisas. As duas filhas do contratante celebraram a chegada da enfermeira, como se recebessem uma carta de alforria. Para elas, era passado o tempo das papinhas na boca, das consultas freqüentes ao médico e das conversas desencontradas de Jurandir – a rotina tornou-se, então, presente para Elisa. A mulher prontamente se ocupou das funções enfadonhas. E parecia estar feliz.

Antes que a história continue é preciso citar Haroldo, o terceiro filho de Jurandir. O rapaz, nos seus trinta anos, foi o artífice do, até então, mais atabalhoado casamento da história familiar, que serve para ilustrar a problemática relação do rapaz com o matrimônio. Há algum tempo, casou-se com “pompa e circunstância”, apesar das recomendações de sua falecida mãe à noiva do rapaz: “Ele tem uns parafusos soltos”, advertiu a senhora. Talvez por má-fé ou por outra razão que valeria apenas uma nota de rodapé neste caso, o casamento durou uma semana, deixando perplexa a pequena a cidade onde vivem, no interior de São Paulo. Sim, apenas uma semana depois, Haroldo estava de volta à casa dos pais e lá continua até hoje, rondado nos últimos tempos pela presença constante de Elisa.

Foi com surpresa semelhante que a família (entenda-se aqui irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhos-neto) recebeu a notícia do namoro de Jurandir e Elisa. Uma prima insinuou que a enfermeira teria de ser criativa para fazer as “coisas” acontecerem, desdenhando do apetite e das capacidades do velho militar, que em outros tempos adorava ostentar a virilidade. Outra disse que tudo se tratava de um “golpe do baú”, no que foi prontamente contestada por uma terceira parente, que reclassificou a ação como “golpe da pensão”. Jurandir recebe uma aposentadoria polpuda, pelos serviços prestados à corporação militar. Serviu, inclusive, na segurança pessoal do falecido governador Adhemar de Barros, história que adorava espalhar, quando ainda se recordava de suas funções no Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo de São Paulo.

Era explícito o interesse de Elisa na pensão de Jurandir. Para quem pouco ou quase nada teve na vida, o dinheiro era uma fortuna, que lhe poderia garantir uma boa velhice, assim que Jurandir “abotoasse o paletó”. As filhas e parte da família lavaram as mãos. Haroldo manteve-se calado, como sempre. “Se ela cuidar bem do Jurandir, a pensão vai ser um bom pagamento pelos seus serviços”, era a frase que se espalhava pelas rodas de conversa da família expandida.

Rapidamente, Elisa tomou conta da vida de Jurandir. Ela mesmo anunciou o namoro, o noivado e, antes do casamento, a conversão do futuro marido à sua fé evangélica. Para não “cair da graça”, segundo o termo usado pela sua igreja, a Congregação Cristã no Brasil, ela só poderia se casar com outro “irmão na fé”. Acontece que Jurandir sempre afirmou aos quatro ventos a sua descrença em Deus. Mas isso pouco parecia importar à obstinada senhora, que meses depois de se instalar na vida de Jurandir o levou às “águas do santo batismo”. O ateu virou evangélico.

Com as contas acertadas com Deus, Elisa pôde dar seguimento ao seu plano. Marcou a data da cerimônia civil, comunicou a dúzia de parentes e os chamou para o casamento. Uma amiga se prontificou a fazer o bolo, outra ajudou a noiva a escolher um vestido e, na hora acertada, Elisa seguiu para o cartório, junto dos padrinhos e das filhas do militar, que cheias de felicidade abdicaram da pensão do pai em nome da liberdade. Jurandir seria conduzido à cerimônia pelo filho, Haroldo, que naquela noite não dormiu, pensando em como lhe seria difícil a vida se Elisa administrasse a pensão do pai. Mesmo que alguns pinos não lhe fossem bem apertados, o rapaz sabia que, na posse de um laudo psiquiátrico, continuaria com a aposentadoria paterna no dia que Jurandir partisse dessa para melhor (ou para pior, segundo alguns). Por isso mesmo, ele teria de barrar os planos de Elisa. A senhora era esperta, mas desdenhou da sagacidade do rapaz.

No dia do enlace, Haroldo vestiu Jurandir e o colocou no carro. Quando a noiva ainda dava os últimos retoques no penteado, ele seguiu para a casa de uma prima. Estacionou o carro e deixou o noivo esperando. Na sala de jantar, confidenciou à parente que não compactuava com a união e que iria seqüestrar o pai. A mulher disse que não queria ser cúmplice, mas já era tarde. Quando perguntou por Jurandir, Haroldo respondeu que o pai sequer se lembrava que aquele era o dia de seu casamento. É provável que também não se lembrasse que tinha uma noiva e, menos ainda, que ela se chamasse Elisa e que ele agora era um homem evangélico e temente a Deus. Ante à incredulidade da prima, Haroldo deu partida no carro e foi passear com o pai. Pegou a estrada rumo a uma cidade vizinha, com toda a calma do mundo.

Na hora marcada, as filhas e a meia dúzia de parentes se reuniram no cartório. Esperaram por Haroldo e por Jurandir, mas eles não chegaram. A noiva logo desatou a chorar. Pensou na velhice sem dinheiro, sem a possibilidade de ela mesmo contratar uma enfermeira que lhe pusesse ao sol e lhe servisse sopinha, fizesse frio ou calor. As filhas se inquietaram. A meia-dúzia de parentes logo se dispersou. A pensão que fez a humilde senhora se apaixonar pelo velho milico parece que também azeitou os parafusos de Haroldo. Nunca o rapaz foi tão sagaz em toda a vida. Na viagem que fez com o pai, consta que Jurandir ficou animado e até recobrou a memória, ao identificar as paisagens que conhecia desde há muito tempo. Só não se lembrou de Elisa, nem mesmo quando, lá pelas tantas, repetiu para Haroldo a frase que dizia todo dia à enfermeira: “Estou ficando com uma fominha...”. Para azar de Jurandir não havia sopa, nem ninguém que lhe levasse a comida à boca.