sábado, 3 de maio de 2008

a história de Elisa e Jurandir

A festa estava pronta. Seria coisa pequena, cardápio frugal, sem bebidas alcoólicas. O bolo de casamento ficou no centro da mesa enfeitada, suficiente para a meia-dúzia de parentes que compareceriam à recepção. A outra meia-dúzia de convidados não iria à festa por discordar do enlace. Naquele tarde quente de terça-feira, 22 de janeiro, a noiva se preparou discretamente, com vestido novo e próprio para uma senhora sessenta anos. Não usava maquilagem, vaidade proibida pela igreja que freqüenta. Estava sóbria e segura. Casaria-se, logo mais, com o homem que tão bem cuidou nos últimos tempos. Aliás, cuidar de idosos é tarefa recorrente no currículo da mulher que aqui chamaremos Elisa. Dentre seus pacientes esteve a irmã de Jurandir, o noivo, que já rompeu a barreira dos oitenta. Olga, a irmã em questão, não esperou para ver a cerimônia – morreu há um ano, deixando Elisa sem trabalho, mas não sem perspectivas. Havia outros idosos na família e ela foi logo contratada pelas filhas de Jurandir, cabelos brancos, viúvo, militar aposentado e com problemas de memória trazidos pela senilidade.

Tão logo o conheceu, mudou-se para sua casa. Fazia a comida de Jurandir, cuidava das tarefas domésticas e esmerava-se em dar tudo o que aquele homem fragilizado necessitasse. Ressalte-se que o rol de necessidades era extenso, mas não incluía tarefas que em outros tempos lhe seriam prazerosas – há dúvidas, inclusive, se Jurandir ainda se lembra de tais coisas. As duas filhas do contratante celebraram a chegada da enfermeira, como se recebessem uma carta de alforria. Para elas, era passado o tempo das papinhas na boca, das consultas freqüentes ao médico e das conversas desencontradas de Jurandir – a rotina tornou-se, então, presente para Elisa. A mulher prontamente se ocupou das funções enfadonhas. E parecia estar feliz.

Antes que a história continue é preciso citar Haroldo, o terceiro filho de Jurandir. O rapaz, nos seus trinta anos, foi o artífice do, até então, mais atabalhoado casamento da história familiar, que serve para ilustrar a problemática relação do rapaz com o matrimônio. Há algum tempo, casou-se com “pompa e circunstância”, apesar das recomendações de sua falecida mãe à noiva do rapaz: “Ele tem uns parafusos soltos”, advertiu a senhora. Talvez por má-fé ou por outra razão que valeria apenas uma nota de rodapé neste caso, o casamento durou uma semana, deixando perplexa a pequena a cidade onde vivem, no interior de São Paulo. Sim, apenas uma semana depois, Haroldo estava de volta à casa dos pais e lá continua até hoje, rondado nos últimos tempos pela presença constante de Elisa.

Foi com surpresa semelhante que a família (entenda-se aqui irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhos-neto) recebeu a notícia do namoro de Jurandir e Elisa. Uma prima insinuou que a enfermeira teria de ser criativa para fazer as “coisas” acontecerem, desdenhando do apetite e das capacidades do velho militar, que em outros tempos adorava ostentar a virilidade. Outra disse que tudo se tratava de um “golpe do baú”, no que foi prontamente contestada por uma terceira parente, que reclassificou a ação como “golpe da pensão”. Jurandir recebe uma aposentadoria polpuda, pelos serviços prestados à corporação militar. Serviu, inclusive, na segurança pessoal do falecido governador Adhemar de Barros, história que adorava espalhar, quando ainda se recordava de suas funções no Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo de São Paulo.

Era explícito o interesse de Elisa na pensão de Jurandir. Para quem pouco ou quase nada teve na vida, o dinheiro era uma fortuna, que lhe poderia garantir uma boa velhice, assim que Jurandir “abotoasse o paletó”. As filhas e parte da família lavaram as mãos. Haroldo manteve-se calado, como sempre. “Se ela cuidar bem do Jurandir, a pensão vai ser um bom pagamento pelos seus serviços”, era a frase que se espalhava pelas rodas de conversa da família expandida.

Rapidamente, Elisa tomou conta da vida de Jurandir. Ela mesmo anunciou o namoro, o noivado e, antes do casamento, a conversão do futuro marido à sua fé evangélica. Para não “cair da graça”, segundo o termo usado pela sua igreja, a Congregação Cristã no Brasil, ela só poderia se casar com outro “irmão na fé”. Acontece que Jurandir sempre afirmou aos quatro ventos a sua descrença em Deus. Mas isso pouco parecia importar à obstinada senhora, que meses depois de se instalar na vida de Jurandir o levou às “águas do santo batismo”. O ateu virou evangélico.

Com as contas acertadas com Deus, Elisa pôde dar seguimento ao seu plano. Marcou a data da cerimônia civil, comunicou a dúzia de parentes e os chamou para o casamento. Uma amiga se prontificou a fazer o bolo, outra ajudou a noiva a escolher um vestido e, na hora acertada, Elisa seguiu para o cartório, junto dos padrinhos e das filhas do militar, que cheias de felicidade abdicaram da pensão do pai em nome da liberdade. Jurandir seria conduzido à cerimônia pelo filho, Haroldo, que naquela noite não dormiu, pensando em como lhe seria difícil a vida se Elisa administrasse a pensão do pai. Mesmo que alguns pinos não lhe fossem bem apertados, o rapaz sabia que, na posse de um laudo psiquiátrico, continuaria com a aposentadoria paterna no dia que Jurandir partisse dessa para melhor (ou para pior, segundo alguns). Por isso mesmo, ele teria de barrar os planos de Elisa. A senhora era esperta, mas desdenhou da sagacidade do rapaz.

No dia do enlace, Haroldo vestiu Jurandir e o colocou no carro. Quando a noiva ainda dava os últimos retoques no penteado, ele seguiu para a casa de uma prima. Estacionou o carro e deixou o noivo esperando. Na sala de jantar, confidenciou à parente que não compactuava com a união e que iria seqüestrar o pai. A mulher disse que não queria ser cúmplice, mas já era tarde. Quando perguntou por Jurandir, Haroldo respondeu que o pai sequer se lembrava que aquele era o dia de seu casamento. É provável que também não se lembrasse que tinha uma noiva e, menos ainda, que ela se chamasse Elisa e que ele agora era um homem evangélico e temente a Deus. Ante à incredulidade da prima, Haroldo deu partida no carro e foi passear com o pai. Pegou a estrada rumo a uma cidade vizinha, com toda a calma do mundo.

Na hora marcada, as filhas e a meia dúzia de parentes se reuniram no cartório. Esperaram por Haroldo e por Jurandir, mas eles não chegaram. A noiva logo desatou a chorar. Pensou na velhice sem dinheiro, sem a possibilidade de ela mesmo contratar uma enfermeira que lhe pusesse ao sol e lhe servisse sopinha, fizesse frio ou calor. As filhas se inquietaram. A meia-dúzia de parentes logo se dispersou. A pensão que fez a humilde senhora se apaixonar pelo velho milico parece que também azeitou os parafusos de Haroldo. Nunca o rapaz foi tão sagaz em toda a vida. Na viagem que fez com o pai, consta que Jurandir ficou animado e até recobrou a memória, ao identificar as paisagens que conhecia desde há muito tempo. Só não se lembrou de Elisa, nem mesmo quando, lá pelas tantas, repetiu para Haroldo a frase que dizia todo dia à enfermeira: “Estou ficando com uma fominha...”. Para azar de Jurandir não havia sopa, nem ninguém que lhe levasse a comida à boca.

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